in Revista de Psicología
Recursos expressivos e desempenho escolar: intervenção em grupo multifamiliar
Resumo:
O presente relato de experiência apresenta uma intervenção sistêmica multifamiliar na qual foram utilizados recursos expressivos como instrumentos para reforçar o suporte familiar de adolescentes com histórico de baixo desempenho escolar, matriculados em duas escolas da rede de ensino fundamental de um município da região metropolitana de Porto Alegre/RS. As atividades desenvolvidas foram fundamentadas no conceito de suporte familiar e privilegiaram as dimensões afetividade, adaptação e autonomia. Os recursos expressivos utilizados como mediadores foram desenho, conto, escrita criativa, sucata, argila e música. Constatou-se que a utilização desses recursos propiciou um ambiente lúdico, descontraído e de cumplicidade, que facilitou a expressão de emoções, promoveu insight e estimulou o desenvolvimento de novos comportamentos relacionados ao suporte familiar, como partilhar atividades, elogiar, brincar e valorizar o grupo familiar, melhorando também o desempenho escolar dos filhos adolescentes.
A utilização de recursos expressivos no setting terapêutico, tais como desenho, pintura, modelagem, escrita criativa, entre outros, pode auxiliar o psicólogo em diferentes contextos, como o clínico, o institucional e o educacional, na meta de evocar sensibilidade, intuição, ludicidade e criatividade, além de favorecer a ressignificação de conteúdos psíquicos, que são materializados no recurso escolhido, dando forma ao pensamento que conduz ao insight (Martins, 2018). Para Riley (1998), as imagens expressam mais do que palavras, além de serem uma linguagem transcultural e universal. Por isso, muitas vezes, é mais fácil expressar uma emoção por meio da linguagem não verbal.
Entretanto, a fundamentação teórica e técnica do psicólogo que trabalha com recursos expressivos é fundamental, pois há distintas maneiras de conduzir e entender o processo de aprendizagem resultante da experiência com cada material (Reisin, 2017). Na terapia de abordagem sistêmica, por exemplo, especificamente na corrente narrativa, o conceito de externalização do sintoma conduz o terapeuta a separar o problema de seu portador. Sabe-se que a externalização de conflitos pode ser feita pela narrativa do indivíduo, mas também por meio da utilização de recursos expressivos, dando forma ao problema. A partir desta materialização se faz possível a sua conscientização e elaboração (White, 2012).
De modo geral, os recursos expressivos são utilizados com a finalidade de estimular a atenção e a imaginação de indivíduos e grupos em processos terapêuticos, auxiliando a expressão de potencialidades individuais (Martins, 2018; Philippini, 2020). Estímulos auditivos, visuais ou táteis oferecem a possibilidade de despertar emoções e memórias, incitando a reflexão sobre conflitos vividos. Dessa forma, auxiliam a comunicação dos conteúdos internos mobilizados a partir de sua expressão material, viabilizando o desenvolvimento de habilidades de enfrentamento (Fonte, 2021).
Apesar da reconhecida importância dos recursos expressivos, constata-se inconsistências nos métodos adotados e medidas de resultados entre as pesquisas que os utilizam, o que leva ao questionamento sobre sua eficácia e efetividade em intervenções (Abbing et al., 2018; Regev & Cohen-Yatziv, 2018). Entretanto, estudos recentes têm buscado atender a essa lacuna avaliando o efeito do uso de algum tipo de recurso (desenho, música, escrita) ou da arteterapia sobre problemas psicológicos em adultos, tais como ansiedade (Abbing et al., 2018), depressão (Karkou, Aithal, Zubala, & Meekums, 2019), trauma (Schouten, De Niet, Knipscheer, Kleber, & Hutschemaekers, 2015) e comportamentos aditivos (Megranahan & Lynskey, 2018; Valladares-Torres, 2021a), assim como sobre doenças crônicas, particularmente o câncer (Jiang et al., 2020; Valladares-Torres, 2021b). Também há trabalhos que mostram os efeitos positivos da incorporação de recursos expressivos em comunidades de idosos, associando-os a desaceleração do declínio cognitivo e a melhoria do bem-estar geral (Amaral & Ohy, 2018; Freitas et al., 2020).
No tocante ao uso de recursos expressivos em intervenções que contemplem famílias, as ações têm sido voltadas apenas a mães ou a pais e não ao grupo familiar como um todo (Monteiro & Santos, 2013). No entanto, intervenções multifamiliares oportunizam a cada membro a percepção de sua parcela de responsabilidade sobre a mudança pretendida, favorecendo um espaço para reflexão e novas aprendizagens (Pozzobon, Falcke, & Marin, 2018). Portanto, elas parecem bastante indicadas para atender famílias na contemporaneidade, especialmente com as demandas evidenciadas pela pandemia de Covid-19, que aumentou os estressores e a tensão intrafamiliar devido ao distanciamento social, sobrecarga dos pais e fechamento das escolas, afetando na aprendizagem e socialização de crianças e adolescentes (Mata, 2020). Nessa direção, a arteterapia tem sido aliada ao processo de ensino-aprendizagem ( Yavorski, 2019 ), auxiliando a concentração, reduzindo a ansiedade e, como consequência, aumentando o rendimento escolar, por dar voz à criatividade, estimular controle emocional, autoconhecimento e autonomia, além do sentimento de pertencimento, especialmente quando as atividades são em grupo de iguais ou multifamiliar (Calixto, 2020).
Nesse sentido, o objetivo do presente estudo é relatar o desenvolvimento e a realização de uma intervenção em grupo multifamiliar que utilizou recursos expressivos como instrumentos para facilitar a interação e a expressão de pais e seus filhos adolescentes com histórico de baixo desempenho escolar, destacando-se a experiência dos participantes. O foco de intervenção foram as famílias devido ao envolvimento dos pais com a educação dos filhos ser apontado como elemento fundamental para o desempenho escolar (Batista, Mantovani, & Nascimento, 2015). As atividades desenvolvidas foram fundamentadas no referencial sistêmico-integrativo e os recursos expressivos utilizados como instrumentos mediadores foram desenho, escrita criativa, conto, sucata, argila e música.
Método
Delineamento
Trata-se de um estudo descritivo, de abordagem qualitativa, que relata sobre o desenvolvimento e a realização de uma intervenção em grupo multifamiliar que utilizou recursos expressivos como instrumentos para facilitar a interação e a expressão de pais e seus filhos adolescentes com histórico de baixo desempenho escolar.
Participantes
A amostra foi selecionada por conveniência em duas escolas da rede municipal de São Leopoldo, que pertence à região metropolitana de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. As escolas, que se situavam em bairros caracterizados pelo contexto de vulnerabilidade social, foram indicadas pela Supervisão Pedagógica da Secretaria Municipal de Educação (Pedagógico/SMED), devido a terem solicitado auxílio frente às sucessivas reprovações de seus alunos.
Cada escola fez um levantamento das famílias que tinham filhos adolescentes matriculados entre o quinto e o oitavo ano do ensino fundamental, os quais apresentavam baixo desempenho escolar e não tinham diagnóstico de distúrbios de aprendizagem. Um total de 166 famílias foram identificadas e convidadas para uma reunião na escola, na qual foram apresentados os objetivos e os procedimentos do presente estudo. Aquelas que demonstraram interesse foram convidadas para uma entrevista, ocasião em que ingressariam no grupo de intervenção multifamiliar. Contudo, apenas 24 aderiram à proposta e houve um significativo índice de abandono (n = 17), justificado com esquecimentos, carga horária de trabalho intensa, distância entre trabalho-escola e presença de filhos pequenos. Assim, restaram sete famílias que completaram a intervenção, as quais são caracterizadas na tabela 1 abaixo.
Procedimentos
Utilizou-se a modalidade de grupos uni e multifamiliares, visando a aproximação intra e interfamiliar para oportunizar mudanças por meio do processo de identificação e troca de experiências, evocando novos comportamentos (Soares & Penso, 2014). Em termos de execução, a intervenção ocorreu em três momentos desenvolvidos no espaço das escolas, em salas de aula disponibilizadas pela coordenação pedagógica. A coordenação foi de uma psicóloga e arteterapeuta, primeira autora deste estudo.
O primeiro momento consistiu em um encontro unifamiliar, com 90 minutos de duração, no qual os participantes de cada família assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como fez o desenho livre da família. Também foi solicitado à coordenação pedagógica da escola o histórico escolar dos adolescentes, com o objetivo de avaliar o desempenho acadêmico. O segundo momento consistiu em quatro encontros em grupo multifamiliar, igualmente de 90 minutos de duração e intervalo quinzenal, quando eram desenvolvidas as atividades descritas na tabela 2 , na qual se apresentam, para cada momento, as temáticas e os materiais utilizados. Dois meses após a conclusão da intervenção multifamiliar houve um terceiro momento que contemplou um último encontro unifamiliar para novamente fazerem o desenho da família e responderem ao questionário de avaliação dos encontros. Ainda, foi solicitado nova cópia do histórico escolar dos adolescentes. O tempo transcorrido do primeiro ao último encontro foi de quatro meses e foram ofertados dois horários na semana para realização da intervenção em cada escola.
O material produzido nos encontros foi registrado por meio de filmagens, fotografias e gravação em áudio. Utilizou-se da análise de conteúdo qualitativa dos relatos das famílias, considerando tanto o grupo familiar como cada membro participante, assim como das imagens do material que foi desenvolvido. Destaca-se que, para realização deste estudo, houve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos (CAAE: 54646916.7.0000.5344), instituição a qual pertenciam as pesquisadoras.
Resultados e discussão
Para atender ao objetivo do estudo, inicialmente será descrito o processo de desenvolvimento da intervenção, em especial as teorias que foram utilizadas como fundamentação e os recursos expressivos considerados, justificando-os. Após, será apresentado como a intervenção foi realizada, indicando como ocorreu a interação e a expressão de pais e seus filhos adolescentes com histórico de baixo desempenho escolar.
Desenvolvimento da intervenção
A intervenção em grupo multifamiliar teve suas atividades fundamentadas no conceito de suporte familiar, pois estudos apontam sua importância no desenvolvimento de competências acadêmicas e também afetivas e sociais dos filhos (Baptista, 2009; Santos & Oliveira, 2019). Portanto, durante os encontros foram trabalhadas as temáticas: comunicação, expressão verbal e não verbal de afetividade, empatia, respeito à regras e limites, expressão adequada de sentimentos negativos em relação à família, especialmente a raiva, e a autonomia.
Diversos recursos expressivos foram utilizados como instrumentos mediadores para facilitar a interação e a expressão de pais e seus filhos adolescentes, como desenho, contação de história, escrita criativa, sucata, argila e música. As histórias ativam o imaginário e a produção de imagens a partir do estímulo auditivo e visual. Já a escrita criativa, utilizada logo após a história, pode incentivar o uso da palavra como instrumento de revelação, pois é dotada de potencialidade simbólica (Philippini, 2020).
O desenho, por sua vez, permite integrar elementos nascidos da fantasia com a realidade, evocando novos significados. A argila, por apresentar flexibilidade e maleabilidade, proporciona uma experiência cinestésica, na qual as mãos conseguem associar-se a ela de modo a permitir espontaneamente sua transformação, possibilitando mudanças rápidas por adição ou subtração de material. Dessa forma, oferece a vivência de poder se moldar de diferentes maneiras, ir e voltar à forma original, além de facilmente remeter às questões regressivas como os sentimentos associados às primeiras fases do desenvolvimento (Oaklander, 1980).
A construção com sucatas pode auxiliar a busca de novos sentidos, pois representa aspectos negativos ou desagradáveis, às vezes negados, que podem ser processados em busca de novos sentidos, exigindo, ao mesmo tempo, improvisação e planejamento. A reciclagem de materiais aproxima emoção e cognição em busca de superação e novas formas de transpor obstáculos, mantendo a ideia de continuidade (Valladares-Torres, 2021a). Por fim, a música também é um excelente recurso expressivo que pode ser usada tanto como elemento estimulante, para melhorar a atenção, despertar o lúdico e os movimentos do corpo, como para favorecer a introspecção e a expressão emocional, além incitar os processos cognitivos, sendo considerado um instrumento pedagógico ( Teixeira, 2017 ).
Em relação a fundamentação teórica, a intervenção orientou-se por uma visão sistêmico-integrativa, privilegiando algumas das muitas escolas de terapia familiar sistêmica. Do olhar construtivista de Riley (1998) buscou-se a neutralidade, mantendo aliança com cada membro dos sistemas familiares e evitando coalizões. A escola estratégica (Haley, 1976) inspirou a prescrição das tarefas ao final de cada encontro, a serem realizadas em casa por todos os membros do sistema, além da inclusão de um ritual: confecção de uma refeição em conjunto, visando reunir a família em torno de uma atividade simples que poderia oportunizar o estabelecimento de novas regras de convívio familiar, servindo de modelo para estratégias futuras do sistema. O modelo narrativo (White, 2012) fundamentou a provocação de transformações a partir da externalização do sintoma por meio dos recursos expressivos e o renarrar através da escrita criativa, baseada na contação de história e na reflexão sobre as vivências oportunizadas pela intervenção.
A técnica do genograma familiar (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2012) inspirou o desenho de um genograma criativo e teve a finalidade de oportunizar uma visão global do sistema, o resgate de memórias passadas e motivar a busca de novos significados a serem somados às histórias atuais, além de colocar em evidência a configuração da família e ajudá-la a identificar os subsistemas ou suprasistemas importantes no momento. Assim, foi possível trabalhar as fronteiras rígidas (limites fortemente demarcados entre os sistemas que levam ao distanciamento emocional entre os membros da família, prejudicando a formação de sentimentos de lealdade e de pertencimento) ou difusas (limites frágeis entre os sistemas, o que faz com que os membros da família reajam de maneira exagerada e intrusiva uns com os outros) encontradas, evocando nos filhos a assunção de novos papéis e funções pertinentes à fase em que se encontravam, a adolescência, possibilitando que se movessem com mais autonomia. Dessa forma, pode-se contemplar pressupostos do modelo estrutural (Minuchin & Nichols, 2009) e, ao mesmo tempo, provocar a aproximação do sistema por meio da comunicação e da afetividade.
Na medida em que o trabalho foi sendo desenvolvido, incentivou-se o diálogo e a busca de novos significados. A coordenadora absteve-se de interpretações e adotou-se uma postura de “não saber” junto às famílias. Assim, também pode-se dizer que as concepções do construcionismo social foram contempladas ( Ravagnane, 2015 ).
Realização da intervenção
Cada um dos momentos da intervenção será descrito e ilustrado com o material produzido pelas famílias, acompanhados por fragmentos de falas. Para manter o anonimato dos participantes, eles serão designados por uma letra, que indica sua função familiar, e um número, que representa a ordem em que foi acessado. Portanto, tem-se as seguintes identificações: Pf1 = pai da família 1; Mf1 = mãe da família 1; Ff1 = filho da família 1 e assim sucessivamente. As orientadoras pedagógicas de cada escola acessada foram identificadas como: OEA = orientadora escola A; OEB = orientadora escola B.
Em um primeiro momento da intervenção, foi realizada uma triagem com cada família. Após o cumprimento das questões éticas, foi inserido o primeiro recurso expressivo utilizado, o desenho, sendo solicitado que desenhassem individualmente sua família na intenção de obter um retrato e expressão livre da percepção de estrutura e sentimento de família de cada um dos membros. Surgiram dúvidas sobre o que era família e quem deveria ser desenhado, sendo incentivados a desenharem o que e quem consideravam que pertenciam a sua família. Não houve rechaço pela tarefa, mas algumas pessoas demonstraram timidez, expressando que havia muito tempo que não desenhavam ou alegaram que não sabiam desenhar. Contudo, todas as famílias cumpriram a atividade.
A Mf1 incluiu no desenho de sua família os parentes mais próximos, como mãe, sobrinhos, irmãs, e a empresa na qual trabalhava. Quando solicitada a falar livremente sobre o seu desenho, relatou que havia incluído a empresa porque “ela faz parte da minha família. É onde passo a maior parte do meu dia” (Mf1), explicando que trabalhava cerca de doze horas diárias. No terceiro momento da intervenção, quando o desenho da família foi refeito, essa mãe desenhou apenas seu núcleo familiar e, quando lhe foi mostrado o primeiro desenho, deu-se conta do quanto registrou dois momentos diferentes de sua vida, um antes e outro depois dos encontros, pois se conscientizou de que seus filhos eram prioridade neste momento: “a minha família são meus filhos. A única coisa que me prende são estas três pessoinhas. Agora eu desenhei eu e mais os três passeando felizes!” (Mf1). Nesta mesma ocasião, ela relatou que havia pedido demissão da empresa porque percebeu que o excesso de horas que trabalhava lhe roubava a possibilidade de estar com os filhos, supervisionar as tarefas da escola e apoiá-los quando necessário: “eu não posso ficar numa empresa que suga tanto a minha energia! Eles têm o direito de ter uma mãe, já que eles não têm o pai presente” (Mf1). Com um novo trabalho de oito horas diárias, disse que conseguia fazer a supervisão dos temas e tarefas escolares, sentia-se mais motivada e alegre em sair, passear e brincar com as crianças e fazer algumas refeições em família. (Figuras 1 y 2 ).
Ainda na triagem, como a literatura destaca a culpabilização dos alunos (Hjörne & Säljö, 2014; Pezzi, Marin, & Donelli, 2016) e/ou de suas famílias (Pozzobon, Mahendra, & Marin, 2017) pelo baixo desempenho acadêmico ou reprovação escolar, entendeu-se como importante oferecer um ambiente acolhedor e já trabalhar parte da primeira dimensão do suporte familiar, que é a afetividade (Baptista, 2009), e com ela as expressões verbais e não verbais de afeto, empatia e comunicação. Dessa forma, estimulou-se a valorização uns dos outros por meio de elogios para facilitar a aproximação entre os membros do sistema, além de deixá-los mais à vontade.
A atividade proposta aos participantes envolveu um recurso expressivo que todos utilizavam no dia a dia escolar: a escrita. Foi solicitado a cada participante que escrevesse seu próprio nome no topo de uma folha e repassasse para que cada familiar escrevesse pelo menos três qualidades que identificavam nele. Pais e filhos apresentaram dificuldade em encontrar palavras e entender o que eram qualidades. Alguns insistiram em querer falar sobre as dificuldades que os filhos apresentavam, mas reforçar a necessidade de focalizarem as qualidades os ajudou a romper a resistência para realizar a atividade. ( Figura 3 ).
Depois da escrita, todos foram incentivados a ler as qualidades que lhes foram atribuídas. Simples palavras escritas em um pequeno pedaço de papel podem estar repletas de força simbólica, pois carregam significados capazes de grandes ressonâncias. O grau de satisfação e alegria ficou evidente, trazendo à tona muita emoção:
Adorei, amei os elogios! Eu chorei porque a gente não está acostumada a elogiar, pela correria. Foi muito bom colocar pra fora coisas que a gente não consegue no dia a dia. Escutar que a mãe é carinhosa, linda, querida, cheirosa é de emocionar (Mf6).
Ao longo dos encontros foi reforçada a importância de elogiar, pois o reconhecimento das qualidades é fundamental para a autoestima, sentimento de ser valorizado e amado. Ao encontro do pensamento sistêmico, os participantes descreveram que, de alguma forma, os membros da família que não compareciam aos encontros também foram beneficiados: “o que aconteceu aqui, mesmo que o outro filho não tenha vindo, já funcionou com ele também. Então o trabalho está sendo importante também para ele” (Mf1).
Após os elogios, seguiu-se com a leitura de um livro que teve a intenção de esclarecer que não existem configurações familiares que possam ser consideradas modelos e que cada família é única e definida pelo vínculo, sentimento de pertencimento e modo como se afetam. Dessa forma, o terceiro recurso utilizado foi a contação de história, a partir do livro Famílias do mundinho (Bellinghausen, 2006), para que fossem para casa com a sensação agradável causada pelos elogios e a ressonância de uma história que presenteou a família com a valorização de sua configuração.
Passados quinze dias da triagem, deu-se início ao segundo momento da intervenção, quando ocorreu o primeiro encontro multifamiliar que iniciou com reflexões sobre o encontro anterior e os reflexos dos elogios na família. Foi retomada a história contada e, em seguida, solicitado o desenho do genograma criativo de cada sistema. As famílias revelaram no desenho sentimentos de pertencimento, simbolizando familiares em cores, folhas, frutos, raízes, sol, estrelas e outras formas. Em suas falas, trouxeram muitos significados importantes, inclusive em relação a familiares distantes ou já falecidos: “minha mãe já não está mais aqui, mas para mim é como se ela estivesse. Ela sempre me ajudou a superar as dificuldades. Ela foi tudo pra mim!” (Mf6). ( Figura 4 ).
Ao final do genograma criativo foi solicitado que cada grupo familiar escolhesse uma frase que representasse sua família: o lema familiar. Os relatos remeteram a diferentes membros, que deixaram um legado de amor, respeito, força, trabalho ou perseverança. Foram expressas falas como: “nós somos simples e únicos” (F2); “a grande família unida” (F4); “nossa pequena família, grande amor: um por todos e todos por um” (F6). Quanto à atividade desenvolvida, expressaram prazer e alegria em sua realização:
Eu gostei, distrai e a gente fica mais unido. No estresse do dia a dia a gente acaba não tendo este tempo de parar e desenhar, parar com o filho e conversar, dar risada, porque a gente riu. Não sabíamos muito o que a gente ia fazer. Daí foi legal! (Mf7).
Essa atividade foi concluída ao som da música “Vamos construir” (“Love can build a bridge”; Barlow, Overstreet, & Judd, 1990) e o grande grupo, formado por pequenas famílias, cantou de mãos dadas um refrão que sugere que amor e união podem construir pontes relacionais importantes. A música, neste caso, foi utilizada ao mesmo tempo como elemento estimulante e motivador de introspecção e para introduzir a ideia de ludicidade nos encontros, inspirando os movimentos circulares da brincadeira de roda, o que trouxe alegria e descontração aos participantes, além de provocar aproximação carinhosa entre as pessoas do mesmo sistema e dos sistemas entre si (Batista & Ribeiro, 2016; Teixeira, 2017 ).
No segundo encontro multifamiliar o objetivo foi estimular a comunicação, bem como a possibilidade de troca, estabelecimento de regras e outras combinações necessárias sobre a rotina familiar, seguindo o trabalho com a dimensão afetivo-consistente do suporte familiar (Baptista, 2009). Utilizou-se para este fim, a construção com sucatas, que objetivava oferecer uma experiência viva e dinâmica de comunicação afetiva e efetiva durante a execução da tarefa, que foi idealizar e construir um jogo em família que implicasse em regras que deveriam ser formuladas em conjunto. A meta também foi estimular a ludicidade e explorar a ideia de que nem tudo custa dinheiro, pois os pais sinalizaram, ao longo dos encontros, dificuldades no lazer em família para evitar gastos. Essa atividade serviu de exemplo de como eles poderiam criar opções interessantes e divertidas com baixo ou nenhum custo.
A tarefa despertou o interesse de todos, motivando diálogo, proximidade e diversão. Os pais resgataram memórias da infância, e se permitiram contar um pouco de suas histórias aos filhos, relatando experiências vividas com seus próprios pais ou avós. A F6 confeccionou um jogo de trilha, com diversas regras e condições para avançar, retornar, parar e ficar preso. Ao falarem ao grupo sobre seu jogo, expressaram a relevância dos encontros, pois fizeram descobertas importantes quanto à vida em família: “é como uma trilha: às vezes a gente pode seguir livre, outras temos que pensar e voltar atrás. Outras vezes temos que parar um pouco pra repensar nossos erros e depois recomeçar” (Mf6). ( Figura 5 ).
No terceiro encontro do grupo multifamiliar, na perspectiva de trabalhar a próxima dimensão do suporte familiar, a adaptação, foi utilizada a argila. Teve-se como objetivo explorar níveis de tensão e agressividade, sentimentos de raiva, proporcionando uma experiência repleta de movimentos potencialmente emocionais: amassar, bater, torcer, rasgar, para depois incentivar o resgate de emoções ou palavras que poderiam estar encobertas pela raiva, refazendo o trabalho. A argila
ajudou a colocar pra fora a raiva que eu sentia. Eu fiz um tijolo porque acho que era como a minha raiva, talvez porque eu queria atirar um tijolo na cabeça de alguém. Depois eu transformei o tijolo num coração, que é como eu sou, porque eu pareço tão durona, mas no fundo eu sou uma manteiga (Mf4).
Comprovou-se a adequação do material à expressão da agressividade, como sugere Oaklander (1980) e Mascarenhas (2011 ), pois da força para amassar, rasgar, torcer, bater, nasceram imagens e metáforas, como um pássaro livre para voar e construir novos caminhos, que surgiu das mãos do pai de uma das famílias, que havia se separado da esposa há pouco mais de um ano e ainda sinalizava necessidade de processar alguns ressentimentos, especialmente a raiva. Ele conseguiu expressar o desejo de superar o rancor que sentia, pois somente assim poderia alçar novos voos e cuidar mais do filho: “eu tinha que me aproximar mais dele; esquecer a raiva que eu tinha da mãe dele!” (Pf2). ( Figuras 6 y 7 ).
Para trabalhar a dimensão autonomia do suporte familiar, no quarto encontro multifamiliar, foi utilizada a contação da história do livro De lagarta à borboleta (De La Bedoyere, 2010), associada à escrita criativa, tarefa que remete à redação, tema inerente à escola, lugar e motivo dos encontros. O livro conta a trajetória da larva que cresce lentamente até criar asas, depois de um tempo de maturação no casulo, buscando, através desta metáfora, uma analogia à adolescência e à necessidade de maior autonomia, bem como com as famílias, que estavam se percebendo mais seguras para poderem seguir seus voos “solo” e sentirem-se tranquilas com o encerramento da intervenção. Desta forma, foi incentivada a reflexão sobre os signos e símbolos da história, momento no qual se percebeu que, embora alguns pais e muitos dos filhos tivessem algumas dificuldades em se expressar por meio da escrita, as histórias surgiram com certa facilidade, revelando o nascimento de uma nova consciência e postura acerca do significado de família e do suporte familiar.
O objetivo da atividade foi proporcionar a cada família a possibilidade de refletir sobre o trabalho realizado nos encontros anteriores, culminando nesta narrativa final, para poderem recontar sua própria história, como propõe White (2012). Para Mf7 os encontros significaram, além da melhora do desempenho escolar da filha, o resgate da relação desta com o pai, a adoção do hábito de elogiarem-se e a melhora da comunicação e do companheirismo entre eles, conforme pode ser visto na figura 8 .
Algumas famílias tiveram diversas dificuldades em comparecer aos encontros, por entraves na organização familiar ou na administração de seus horários, o que resultou em atrasos e ausências. Houve, ainda, outros percalços, como fortes chuvas que assolaram a região metropolitana de Porto Alegre no período da realização deste estudo, fazendo com que muitas famílias ficassem desabrigadas. Para dar conta dessas diversas situações, buscou-se recuperar alguns encontros em datas e horários alternativos, mantendo-se a mesma organização da intervenção. Foi necessário acessar, apoiar e estimular essas famílias por meio de telefonemas e mensagens, sendo que esta atenção gerou um sentimento de gratidão e valorização da coordenadora reafirmado nos encontros: “não desistiu de nós” (MF7).
A intervenção com as famílias também reverberou no ambiente escolar, pois, ao final do trabalho, a orientadora pedagógica da escola A fez um depoimento emocionante, que revela a solidão e a sobrecarga dos professores, a necessidade de mais apoio e o desejo da parceria entre universidade e escola, visando maior valorização e melhor aproveitamento das pesquisas e do espaço escolar:
Gostaria que este tipo de trabalho existisse sempre e que conseguisse atingir mais famílias e alunos porque nós somos simplesmente professores e professor hoje tem papel de psicólogo, de médico, de enfermeiro e de outras coisas para as quais não temos formação, nem capacidade. Tentamos entender e ajudar, mas não somos profissionais destas áreas e a educação vai mais além! Então, o apoio através de convênios ou projetos com as universidades, trabalhos da graduação e pós-graduação sempre serão muito bem-vindos! (OEA).
A orientadora pedagógica da escola B também solicitou que sua instituição continuasse a fazer parte da rede de parceiros para pesquisas, especialmente se estas fossem no modelo de intervenções, pois sentia que este tipo de estudo agregava conhecimento que refletia na escola como um todo. As escolas reconheceram e enfatizaram os efeitos positivos da intervenção sobre as famílias e no desempenho escolar dos alunos que participaram do processo. Além disso, perceberam uma maior aproximação entre as famílias e a escola: “as famílias ainda não têm consciência da importância da educação, da escola e do trabalho de equipe, então eles evitam ou desistem, até porque sentem-se culpados e esta realidade tem sido difícil de modificar” (OEB).
O terceiro momento da intervenção ocorreu dois meses após o quarto encontro, no formato unifamiliar, e teve a finalidade de avaliar a intervenção, obter novo desenho livre da família e fazer uma escuta sobre as mudanças percebidas no sistema. Em conjunto, foi possível constatar que a presença de recursos expressivos como ferramenta em todos os encontros da intervenção foi um aliado no sentido de oferecer uma acolhida afetiva aos participantes, bem como acrescentar sensibilidade, prazer e ludicidade, desinibindo e aproximando os membros das famílias e os diferentes grupos familiares. Tais recursos propiciaram a comunicação com os jovens, uma vez que se mostravam verbalmente econômicos, mas participativos e motivados quando convidados às atividades propostas. Igualmente, os pais juntaram-se às tarefas com entusiasmo e foi possível observar o aumento de diálogo, planejamento em conjunto, exercício de errar e concertar tais erros após novos planejamentos em equipe, satisfação ao concluir as metas e orgulho ao apresentar os resultados ao grupo.
A avaliação da intervenção realizada pelos participantes revelou um elevado grau de satisfação. Muitos expressaram que a intervenção como um todo fez com que aumentasse a qualidade de vida em família e estimulasse a aproximação e afetividade entre os membros. A maioria gostou de todas as atividades, mas a argila e a sucata foram apontadas como os recursos expressivos que mais auxiliaram nessa mudança. A argila acrescentou um gosto de novidade, pois muitos dos participantes jamais haviam experimentado o material: “eu nunca tinha mexido nela, é muito gostoso, bom de amassar” (Ff4). A sucata, por sua vez, foi descrita como um recurso capaz de ajudar a aproximar a família em torno de uma tarefa que necessitava ser feita em grupo, exigindo planejamento, comunicação, diálogo e criação de regras. O envolvimento de toda a família foi destacado: “muito legal montar um brinquedo junto com toda a família” (Ff7); “trabalhamos unidos, ninguém fez mais do que o outro, todo mundo ajudou” (Mf4) e além do mais “é um material que não precisa gastar e pode reunir toda a família” (Mf7).
O desenho da configuração familiar inspirado no genograma também foi apontado como uma atividade afetivamente envolvente, pois evocou lembranças do passado, trazendo à memória alguns familiares distantes, mas que foram importantes: “têm familiares que estavam meio esquecidos e distantes e eu lembrei deles e coloquei na minha árvore e eles se aproximaram através do desenho” (Pf5). Encontrar a frase que representasse a família e seus legados, de igual forma, foi um exercício que uniu a todos em torno de uma representação de seu sistema.
Como um todo, a intervenção com recursos expressivos em famílias foi descrita como muito proveitosa, prazerosa e de grande relevância, pois “se cada família pensasse como eu estou pensando agora ia unir mais os pais com os filhos, porque na minha casa foi o que aconteceu: mais união, mais compreensão! Um curso como este deveria acontecer mais vezes na vida!” (Mf3). É importante ressaltar que não houve interpretações acerca das produções dos participantes, pois a materialização de sentimentos e pensamentos por meio dos recursos expressivos utilizados propiciou o surgimento espontâneo de palavras, frases, exclamações, lágrimas e a revelação livre dos significados para o grupo como um todo. A presença da coordenadora se caracterizou pelo acolhimento, proposta de trabalho, oferta dos materiais e estímulo à participação.
Em síntese, destaca-se que foram verificadas mudanças importantes no suporte familiar, em todas as dimensões analisadas: afetivo-consistente (expressões verbais e não verbais de afetividade, tais como empatia, comunicação e respeito a regras); adaptação familiar (expressão de sentimentos e comportamentos negativos em relação à família, tais como raiva e isolamento); e autonomia familiar (liberdade, privacidade e confiança). Ao mesmo tempo, foram verificadas alterações de comportamento dos adolescentes em relação aos estudos e maior comprometimento e autonomia para realização das atividades sob sua responsabilidade, resultando em melhor desempenho escolar expressos em termos de conceitos. Todos adolescentes apresentaram elevação dos conceitos após a intervenção, com exceção Ff2, cuja mãe negou-se a participar dos encontros.
Destaca-se que a realização deste estudo no ambiente escolar favoreceu a sintonia entre a utilização de recursos expressivos, as propostas dos encontros e os participantes, pois muitos dos materiais são comumente utilizados neste contexto em vários momentos do processo de ensino-aprendizagem e foram rapidamente aceitos. A utilização do espaço escolar, tão disponível e pertencente à comunidade, também promoveu a aproximação entre as famílias e a escola, como recomendam diversos autores, especialmente para demandas relacionadas à aprendizagem ( Pereira, 2017 ). Nesse sentido, é preciso repensar alguns conceitos do fazer profissional dos psicólogos, pois a escola pode ser utilizada para o desenvolvimento de intervenções de caráter preventivo, na busca de contrabalançar a demanda crescente, especialmente nas comunidades periféricas, e o número reduzido de profissionais que atende a rede pública de saúde e educacional.
Considerações finais
Este estudo apresenta a utilização de recursos expressivos em intervenções com famílias, demonstrando que são muitas as possibilidades que eles oferecem no setting terapêutico. No presente estudo, os recursos expressivos viabilizaram maior espontaneidade, criatividade e ludicidade entre os indivíduos e no grupo como um todo, favorecendo um espaço para reflexão e novas aprendizagens, além de oportunizar a cada família a percepção de sua parcela de responsabilidade sobre a mudança a que se propuseram ao ingressarem no grupo. Em relação aos adolescentes, especificamente, os recursos utilizados facilitaram a comunicação, traduzindo sentimentos e ideias em imagens e formas. A escolha de materiais simples se revelou indicada, pois auxiliou a elaboração e ressignificação do suporte familiar, além de se tornar exemplo de como se pode criar opções divertidas e econômicas para brincar em família.
Trabalhar com grupos multifamiliares favoreceu o surgimento de maior aceitação do outro, suas dificuldades e limitações, de troca de experiências e de empatia, o que auxiliou o despertar da autoaceitação, princípio da mudança familiar. Ao se sentirem entre iguais, cada família conseguiu, progressivamente, expressar-se livremente, o que possibilitou um processo psicoeducativo entre elas, bem como uma ampliação da rede social, uma vez que muitos pais e filhos passaram a contar com outros membros do grupo fora do ambiente da intervenção. As atividades propiciaram o desenvolvimento de novos comportamentos na dinâmica familiar, como a partilha das atividades de cuidados com a casa, maior comunicação, elogios, brincadeiras e valorização da família.
Entretanto, alguns desafios se apresentaram. Um deles foi lidar com a dificuldade de algumas famílias manterem data e hora marcada para os encontros. Dessa forma, teve-se que lançar mão de algumas estratégias para evitar a evasão dos participantes fazendo um bom rapport desde o início, mantendo contato constante com as famílias e tendo alimento durante os encontros, pois muitos pais vinham direto do trabalho. Foi criado também um sistema de recuperação para as famílias que não pudessem comparecer à intervenção realizada durante a semana no turno da noite, mas todos estes cuidados não impediram a significativa evasão, questão que foi discutida no estudo de Marin, Alvarenga, Pozzobon, Lins e Oliveira (2019).
Diante do exposto, acredita-se que a proposta de intervenção apresentada oferece um modelo que pode ser replicado mediante treinamento, com vistas a prevenção e promoção de saúde no contexto escolar. Os ganhos da pesquisa foram importantes e de grande aprendizagem para todos os envolvidos no processo, pois facilitou mudança e transformação nos sistemas por meio da integração de teorias e técnicas, como preconiza a abordagem sistêmica-integrativa. Portanto, sugere-se a realização de novos estudos com o mesmo formato, ampliando a amostra para verificar a sua eficácia e, quiçá manualizar a intervenção para que possa ser desenvolvida em diversas escolas.
Resumo:
Método
Delineamento
Participantes
Procedimentos
Resultados e discussão
Desenvolvimento da intervenção
Realização da intervenção
Considerações finais